Poesia Gaúcha


A Doma do Potro Corisco
Ary Neri de Oliveira e Silva


Correu notícia que havia 
Um fazendeiro afamado...
Que tinha um potro aporreado
Haragano e muito arisco
Matreiro e tão ardiloso...
Que parecia um tinhoso
E se chamava corisco

Criado, quase selvagem
Nos campos mais afastados 
Não conhecia alambrado,
No campo era soberano,
Era um bagual alazão 
Ligeiro igual furacão 
E livre, como o minuano.

Para laçar este potro
Reuniu toda peonada,
Separam da manada 
O colocaram arreio,
Cada peão que montava
Pensando que lhe domava
Caia o tombo, mais feio.

Tiveram que desistir 
Deixando o potro aporreado,
Redomão e mal – domado
E o fazendeiro Francisco,
Bancando o bom cavalheiro
Dava cem mil em dinheiro
Pra
 
quem domasse o corisco.

Fiquei sabendo da oferta 
Pensei uma hora e meia
Vi que a parada era feia
Mais resolvi aceitar
E, mesmo correndo risco
De perder para o corisco 
Eu precisava arriscar.

Encilhei meu pingo branco,
Meu cavalo de confiança...
Renovei minha esperança 
E fui tratar com Dom Chico,
Sujeito de pouco estudo
Mas, entendia de tudo...
Com honras, lhe qualifico.

Cheguei na fazenda grande
Domingo de céu nublado...
Dom Chico estava sentado
Com a família na varanda,
Afinando um violão
E tomando chimarrão
Com sua Iolanda.

Me recebeu com reservas
Perguntando o que eu queria,
Eu lhe disse o que devia:
—sou um peão de talento
domador de potro chucro,
onde vejo que dá lucro
então ali me apresento.

O velho me olhou sorrindo
E disse:—meu bom rapaz!
te apresenta ao capataz 
e diga que amanhã bem cedo
corisco vai ser domado,
ou ficar mais aporreado
se o domador tiver medo.

Não gostei da ironia!
Sou franco, senhor Francisco,
Mande pegar o corisco 
Que eu quero encilhar agora
Vou mostrar que minha fama
Não pode, cair na lama...
Que cortá-lo de espora.

Eram mais de meia tarde 
Quando laçaram o bagual,
Mais brabo que este animal
Somente tigre ou leão,
Dava coice e manotaço
Mordendo e dando pataço
E cavocando no chão.

Encilhei este cavalo
Montei e mandei soltar,
Começou a corcovear
Então eu baixei-lhe o mango,
Juntei o bicho na espora
E saímos campo à fora
Fiz até dançar um tango.
Este potro corcoveava
Chegava a tremer o chão...
Eu agüentando o tirão
Mas confesso que assustado,
Pois nunca vi coisa igual
Parecia, que o bagual
Estava endemoniado.

Mais ou menos quatro horas
Corcoveando sem parar,
Cansou de tanto apanhar,
Parou e ficou quietinho...
Por quase uma meia hora
Cortando a mango e espora
Desde a anca, até o focinho.

Já eram quase dez horas
Dom Chico estava apreensivo
Sem saber se eu estava vivo,
Derrepente fui chegando
No trote do alazão...
Fui direto ao galpão
Onde estavam me esperando.

Apeei frente ao galpão
O pessoal me aplaudiu,
Dom Chico quando, me viu
Ficou todo sorridente,
Peço desculpa seu moço
Eu sei que banquei o grosso
Com um rapaz competente.

Espero que me desculpe
Aqui está o seu dinheiro,
Mandei preparar primeiro
Um banho e um chimarrão,
Depois vamos churrasquear
E juntos comemorar
Aqui mesmo no galpão.

Eu aceitei o convite
Para jantar no galpão
Senti que meu coração 
Bateu mais forte e ligeiro
Quando vi, bela e formosa,
Mais linda que a própria rosa
A filha do fazendeiro.

Fiquei bastante a vontade
Lá no galpão da fazenda,
Jantei ao lado da prenda
Que me pediu, por favor,
Fique aqui, não vá embora
Se não meu coração chora
Por falta do teu amor.

Eu, que sempre fui matreiro
Ressabiado de pealo 
Encilhei o meu cavalo
Pedi desculpas a Dom Chico
Na prenda fiz um carinho
Despedi com um beijinho
Mas...desta vez eu não fico... 


Reza Chucra
Alcy Cheuiche

Perdoe Virgem Maria
Por lhe tomar atenção, 
Envolvendo um coração
Tão puro e tão adorado,
Nesta miséria qu'eu trago,
Que arrasto, é melhor que diga,
Por esta terra inimiga,
Onde nunca fui amado.

A Senhora bem se lembra
Que nem sempre foi assim...

Embora não fosse em mim
Que
a fortuna tinha ninho,
Eu bem que tive carinho
E uma mulher cuidadosa
Que me deixava de jeito,
Um lenço branco no peito,
A bombacha bem limpinha, 
Quando para a igreja eu vinha,
No tempo qu'eu fui feliz.

Agora olhe pra mim.
Veja esta roupa rasgada
Qu'eu carrego com vergonha.
Parece que a gente sonha,
Quando vê que não é nada
Prá dominar o seu vício
Quando eu morava no pago
As vezes tomava um trago
No mais prá molhá a garganta
E agora querida Santa,
Até virei cachaceiro,
Depois que bebo o primeiro
Não há nada que me pare.
E depois até que eu sare
Vem me subindo a cabeça
Toda essa vida passada
E o rosto da minha amada
Enxergo assim como em sonho...

Ó minha Nossa Senhora,
Escute ao menos agora
Um pedido que le faço.

Sei que a morte já me ronda
Pela porteira do rancho...
Até já vejo os caranchos
Rodeando em volta de mim.

Reconheço o meu pecado,
E quando tiver chegado
Lá na fronteira do céu
Vão me apontar outro rumo:
- Ovelha com mancha preta
Bota a marca na paleta
Que só serve prá o consumo. -

Pra mim não há mais remédio,
Não é pra mim o pedido.
Sou índio chucro vencido
Pelo vício aqui do povo.

Eu peço é pelo meu filho,
Que abandonei lá no pago
Quando a sina de índio vago
Me arrebatou da querência.

Proteja a sua inocência...
Não deixe que o coitadinho
Siga este duro caminho
Que está seguindo seu pai.

Que fique por toda a vida
Grudado naquele chão,
Que resista a tentação
Com toda a força de machado,
Que não morra como guacho
Quando para o coração.



Mulher Gaúcha
Antonio Augusto Fagundes

Os velhos clarins de guerra
desempoeirando as gargantas
quero-querearam no pago.
E o patrão coronelado,
reuniu em torno parentes,
posteiros, peões e agregados.
Chegara um próprio do povo
trazendo urgente recado
que se ia pelear de novo
e o coronel, satisfeito,
dizia, fazendo graça:
"vamos ver, moçada guapa,
quem honra a estirpe farrapa
e atropela numa carga
por um trago de cachaça...Os velhos clarins de guerra
desempoeirando as gargantas


Um filho saiu tenente,
o mais velho - capitão,
um tio ficou de major.
(o pobre que passa o pior,
a oficial não chega, não:
o capataz foi sargento,
um sota ficou de cabo
e a peonada, e os posteiros,
ficaram soldados rasos
pra pelear de pé no chão...)

Carneou-se um municio farto
- vindo de estâncias vizinhas -
houve rações de farinha,
queijo, salame e bolacha,
se santinguando em cachaça
a sede dos borrachões.

E a não ser saudade e mágoa
nada ficou pra trás
a garganta dos peçuelos
misturava pesadelos
sanguessugando, voraz,
cartuchos e caramelos,
o talabarte e o pala,
bolacha e pente de bala,
fumo e chumbo - guerra e paz...
No humilde rancho de um posto,
um moço encilhou cavalo
beijou a prenda e se foi.
Na madrugada campeira
luzia a estrela boieira
sinuelando o arrebol
e as barras de um dia novo
glorificavam o horizonte
lavando a noite defronte
com tintas de sangue e sol.

E durante largo tempo
ficou a moça na porta
olhando a estrada, a chorar,
sem saber porque o marido
tem que partir e lutar,
não entendia de guerra!
Pobre só votam em quem mandam
e desconhece outra coisa
que não seja trabalhar.

Então a moça franzina
tomou uma decisão!
Esqueceu delicadezas,
ternuras de quase -noiva
e atou os cabelos negros
debaixo de um chapelão
e se atirou no trabalho,
cuidando da casa e campo,
do gado e da plantação.

Emagreceu e tostou-se
e enrijeceu como o aço!
Temperando-se na luta
madurou-se como a fruta
que é torcida no baraço.

Montou e recorreu campo,
botou vaca, tirou leite
e arrastou água da sanga.
Fez do tempo a sua canga
no lento girar do dia
e quando as vezes parava
comovida, acariciava
o ventre, que pouco a pouco
se arredondava e crescia.

Só a noite, quando cansada
fechava o rancho e dormia
seu homem lhe aparecia:
ora voltava da guerra,
ora peleava - e morria!...
Que triste o rancho vazio
nas longas noites de frio
ou nas tardes de garoa!
Que medo de ir a estância!
(e ao mesmo tempo, que ânsia
de saber notícia boa!)
Vizinha perdera o filho.
pra outra, fora o marido.
E um dos que tinham, morrido,
um moço, que era tropeiro,
quando feito prisioneiro
tinha sido degolado
sem nenhuma compaixão.

E até um filho do patrão
se ensartara numa lança
em meio a uma contradança
de berro, tiro e facão.

E o fulano? Que fulano?
Aquele, que era posteiro!
Moço guapo! No entrevero
é como um raio a cavalo.

Trezontonte levou um pealo
mas é sujeito de potra:
já está pronto pra outra,
sempre disposto e faceiro.

E a moça voltava ao rancho,
tão moça ainda, e tão só!
E quando fitava a estrada,
só via o vazio do nada,
o nada o silêncio e o pó.

Não sabe quem vem primeiro,
se vem o pai, ou o filho.
E os seus olhos, novo brilho
roubaram de dois luzeiros.

Cada noite, cada aurora,
vai encontrá-la a pensar:
quando o marido voltar,
de novo estará bonita
- novo vestido de chita
e novo brilho no olhar.

E quando o filho chegar,
quantas cargas de carinho
caretearão os seus dedos!
Quantos e quantos segredos
sussurrarão bem baixinho!
E para ele, os passarinho
cantarão nos arvoredos...

Qual deles chega primeiro?

E se um deles não chegar...?

Mas a guerra segue além,
o filho ainda não vem
e ela a esperar e a esperar!...

Bendita mulher gaúcha
que sabe amar e querer!
Esposa e mãe, noiva e amante
que espera o guasca distante
e acaba por compreender
que a vida é um poço de mágoa
onde cada pingo d'água
só faz sofrer e sofrer



Que diacho! Eu gostava do meu cusco
Alcy Cheuiche


Entendo. Envelheci entendendo.
Bicho não tem alma, eu sei bem,
mas será que vivente tem?

Que diacho! Eu gostava do meu cusco.
Era uma guaipeca amarelo,
baixinho, de perna torta,
que me seguiu num domingo,
de volta de umas carreira.

Eu andava meio abichornado,
bebendo mais que o costume,
essas coisa de rabicho, de ciúme,
vocês me entendem, ele entendeu.

Passei o dia bebendo
e ele ali no costado
me olhando de atravessado,
esperando por comida.

Nesse tempo era magrinho
que aparecia as costela.
Depois pegou mais estado
mas nunca foi de engordá.

Quando veio meu guisado,
dei quase tudo prá ele.
Um pouco, por pena dele,
e outro, que nesse dia,
só bebida eu engolia
por causa dos pensamento.

Já pela entrada do sol,
ainda pensando na moça
e nas miséria da vida,
toquei de volta prás casa
e vi que o cusco magrinho
vinha troteando pertinho,
com um jeito encabulado.

Volta prá casa, guaipeca!
Ralhei e ralhei com ele.
Parava um puco, fugia,
farejava qualquer coisa,
depois voltava prá mim.
O capataz não gostou,
na estância só tinha galgo,
mas o guaipeca ficou.

Botei o nome de sorro,
as crianças, de brinquinho,
mas o nome que pegou
foi de guaipeca amarelo.

Mas nome não é o que importa.
Bicho não tem alma, eu sei bem.
Mas será que vivente tem?

Ficou seis anos na estância.
Lidava com gado e ovelha
sempre atento e voluntário.
Se um boi ganhava no mato,
o guaipeca só voltava
depois de tirá prá fora.

E nunca mordeu ninguém!
Nem as índia da cozinha
que inticava com ele.
Nem ovelha, nem galinha,
nem quero-quero, avestruz.
Com lagarto, era o primeiro
e mesmo piquininho
corria mais do que um pardo.

E tudo ia tão bem...
Até que um dia azarado
o patrãozinho noivou
e trouxe a noiva prá estância.

Era no mês de janeiro,
os patrão tava na praia,
e veio um mundo de gente,
tudo em roupa diferente,
até colar, home usava,
e as moça meio pelada,
sem sê na hora do banho,
imagino lá no arroio,
o retoço da moçada.

Mas bueno, sou doutro tempo,
das trança e saia rodada,
até aí não tem nada,
que a gente respeita os branco,
olha e finge que não vê.
O pior foi o meu cusco,
que não entendeu, por bicho,
a distância que separa
um guaipeca de peão
da cachorrinha mimosa
da noiva do meu patrão.

Era quase de brinquedo
a cachorrinha da moça.
Baixinha, reboladera,
pêlo comprido e tratado,
andava só na coleira
e tinha medo de tudo,
por qualquer coisa acoava.

Meu cusco perdeu o entono
quando viu a cachorrinha.
E les juro que a bichinha
também gostou do meu baio.
Mas namoro, só de longe
que a cusca era mais cuidada
que touro de exposição.

Mas numa noite de lua,
foi mais forte a natureza.
A cadela tava alçada
e o guaipeca atrás dela
entrou por uma janela
e foi uma gritaria
quando encontraram os dois.

Achei graça na aventura,
até que chegou o mocito,
o filho do meu patrão,
e disse prá o Vitalício
que tinha fama de ruim:
Benefecia o guaipeca
prá que respeite as família!
Parecia até uma filha
que o cusco tinha abusado.

Perdão, le disse, o coitado
não entende dessas coisa.
Deixe qu'eu leve prá o posto
do fundo, com meu cumpadre,
depois que passá o verão.
Capa o cusco, Vitalício!
E tu, pega os teus pertence
e vai buscá teu cavalo.

Me deu uma raiva por dentro
de sê assim despachado
por um piazito mijado
e ainda usando colar.
Mas prometi aqui prá dentro:
mesmo filho do patrão,
no meu cusco ninguém toca.
Pego ele, vou m'embora
e acabou-se a função.

Que diacho! Eu gostava do meu cusco.
Bicho não tem alma, eu sei bem.
Mas será que vivente tem?

Campiei ele no galpão,
nos brete, pelas mangueira
e nada do desgraçado.
No fim, já meio cansado,
peguei o ruano velho
e fui buscá o meu cavalo.

Com o tordilho por diante,
vinha pensando na vida.
Posso entrá numa comparsa,
mesmo no fim das esquila.
Depois ajeito os apero
e busco colocação,
nem que seja de caseiro,
se nã me ajustam de peão.
E levo o cusco comigo
pois foi o único amigo
que nunca negou a mão.

Nisso, ouvi a gritaria
e os ganido do meu cusco
que era um grito de susto,
de medo, um grito de horror.
Toquei a espora no ruano
mas era tarde demais.
Tinham feito a judiaria
e o pobrezinho sangrava,
sangrava de fazê poça
e já chorava fraquinho.

Peguei o cusco no colo
e apertei o coração.
O sangue tava fugindo,
não tinha mais esperança.
O cusco foi se finando
e os meus olho chorando,
chorando como criança.

Que diacho! Eu gostava do meu cusco.
Bicho não tem alma, eu sei bem.
Mas será que vivente tem?
Nessa hora desgraçada
o tal mocito voltou
prá sabê pelo serviço.
Botei o cusco no chão,
passei a mão no facão
e dei uns grito com ele,
com ele e com o Vitalício!

Ele puxô do revólver
mas tava perto demais.
Antes que a bala saísse,
cortei ele prá matá.
Foi assim, bem direitinho.
Não tô aqui prá menti.
É verdade qu'eu fugi
mas depois me apresentei.
Me julgaram e condenaram
mas o pior que assassino,
foi dizerem que o motivo
era pouco prá o que fiz...

Que diacho! Eu gostava do meu cusco.
Bicho não tem alma, eu sei bem.
Mas será que vivente tem?




CHIMARRÃO(Glaucus Saraiva)

Amargo doce que eu sorvo 
Num beijo em lábios de prata. 
Tens o perfume da mata 
Molhada pelo sereno. 
E a cuia, seio moreno, 
Que passa de mão em mão 
Traduz, no meu chimarrão, 
Em sua simplicidade, 
A velha hospitalidade 
Da gente do meu rincão. 

Trazes à minha lembrança, 
Neste teu sabor selvagem, 
A mística beberagem, 
Do feiticeiro charrua, 
E o perfil da lança nua, 
Encravada na coxilha, 
Apontando firme a trilha, 
Por onde rolou a história, 
Empoeirada de glórias, 
De tradição farroupilha. 

Em teus últimos arrancos, 
Ao ronco do teu findar, 
Ouço um potro a corcovear, 
Na imensidão deste pampa, 
E em minha mente se estampa, 
Reboando nos confins, 
A voz febril dos clarins, 
Repenicando: "Avançar"! 
E então eu fico a pensar, 
Apertando o lábio, assim, 
Que o amargo está no fim, 
E a seiva forte que eu sinto, 
É o sangue de trinta e cinco, 
que volta verde pra mim.

2 comentários:

  1. preciso do contato do autor Ary Nery de Oliveira e Silva

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  2. Adorei todas as poesias
    São perfeitas
    Principalmente a do Chimarrão

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